sábado, 16 de outubro de 2010

Dia 8 (cont)

Quando nós saímos da quitinete do Márcio, estávamos morrendo de fome (e Anna de medo). Mas a gente não tinha ideia do que era fome.

Logo na portaria, a gente encontrou nosso primeiro morto-vivo. Falando assim parece até piada. Ele estava debruçado sobre o corpo que deveria ter sido de uma senhora. Deveria porque não deu para identificar direito. Metade da cabeça tinha desaparecido ou se misturava ao sangue já quase seco que manchava o piso esverdeado do blobo. Também quase não havia carne no tórax, nos braços e nas pernas. Um pedaço da carne de uma delas, aliás, jazia perambulante na boca do morto-vivo, que virou a cabeça na nossa direção assim que descemos das escadas. Ele encarou a gente, quase hesitante, e parou de mastigar. Era como se ele tivesse percebido que não deveria continuar comendo aqueles restos borrachentos, já que estavam ali, em sua frente, três enormes pedaços de carne nova. Juro que a cena durou um século e arrepiou até o último fio de cabelo. Uma coisa era ver aquilo em filme, outra na real. Bem na sua fuça.

Era um garoto, de uns 20 anos no máximo. A pele era muito, mas muito branca (só que não tinha veias à mostra). Talvez por isso o sangue e os pedaços de carne humana (aquilo ainda perpetua meus sonhos) ficavam tão destacados em seu rosto. As mãos também estavam cobertas por um vermelho escuro gotejante. Havia daquilo até mesmo sob as unhas do moleque.

Se eu tivesse que contar com Márcio e Anna, que estavam estáticos, hoje eu estaria morto, ou sozinho. O garoto rugiu como um animal e partiu para cima de Anna, que se assustou e o empurrou com as duas mãos espalmadas. E teria lhe cravado os dentes na segunda investida se eu não tivesse pegado o extintor pendurado (sempre achei que jamais usaria um deles – pois ficam ali enfeitando a parede, eternamente). A primeira porrada foi no lado direito do rosto e abaixei a guarda. Achei que seria suficiente. Principalmente após perceber que os ossos da face tinham afundado, deslocando o nariz e o olho, e deixando uma pele murcha caída de lado. Mas ele não sentiu aquilo. E continuou. Não pensei que eu fosse explodir daquele jeito, mas parti para cima do garoto e bati com o extintor mais três, quatro vezes. Mentira. Acho que foi umas vinte. Até meu braço cansar. A cabeça do menino foi embora, dispersa no piso. Os pedaços ficaram espalhados, assim como o vômito de Márcio. Anna e eu teríamos feito o mesmo se ainda tivéssemos algo no estômago.

Nós corremos como doidos para o carro e passamos em vários lugares depois disso. Mas os dias 4, 5 e 6 eu não quero comentar. Não agora. O que interessa é que estou na casa de um desconhecido. Márcio, como eu já disse, ficou lá fora.

A Anna está me chamando. Se der, entro mais tarde para contar como chegamos aqui.

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