terça-feira, 30 de novembro de 2010

Dia 33

Aos que me acompanham em minha luta pela sobrevivência, não há motivo para preocupação. Fiquei mais de dois dias sem escrever, após a louca fuga da loja de conveniência do posto de combustível do aeroporto. Até chegar aqui (já conto) e se estabelecer, passamos por maus bocados.

Conseguimos sair em uma Range Rover preta, quase sem combustível, então tivemos que parar em um posto da Asa Sul. Anna abasteceu até a boca enquanto tive de atirar em um bocado de mortos-vivos. A pintura desse belo carro também já foi para o espaço, uma vez que tivemos de bater e arrastar alguns outros veículos que estavam pelo caminho.

Nosso “passeio” pela cidade não foi nada animador. Foi aterrorizante, para dizer a verdade. As ruas estão tomadas por eles. Procurei não atropelá-los com força, pois podia danificar o carro, mas fui obrigado a colocar terceira marcha e passar por cima de vários nos pontos mais críticos. A paisagem de Brasília não é mais a mesma. As ruas, antes largas e vazias no que diz respeito a pessoas, estão agora negras, de tantos zumbis apinhados.

O primeiro erro nesta nova incursão foi parar em uma padaria para conseguir alguma comida. Assim que entramos, quase vomitamos com o cheiro do lugar. Quase tudo que poderia estragar e que foi deixado para trás já estava verde ou negro. O cheiro é ainda pior que o dos mortos. Conseguimos algumas coisas empacotadas, mas acabamos encurralados por uns seis zumbis. “Burro”, pensei, “as padarias têm, geralmente, só uma entrada. Tive de abater três deles e lutar contra outros três. Anna junto. E foi aí que ela torceu o pé. Não sei como consegui arrastá-la até o carro, mas estamos vivos. Ela sem poder andar direito e eu com um corte profundo no braço – conseguido graças a um vidro quebrado do freezer.

Onde estamos agora? Em um shopping Center (é estranho usar a segunda palavra para esse estabelecimento. Ninguém o faz). Paramos o carro em uma das entradas, pois não avistamos nenhum morto-vivo por aqui. Aliás, só encontramos o primeiro ontem, que foi abatido a pancadas, sem tiros, para não chamar atenção. Incrível isso aqui estar vazio.

Mas é fácil imaginar o motivo disso aqui estar vazio. Quando a notícia foi dada, a do caos, todos se preocuparam em fugir, em conseguir comida ou em arrumar um lugar seguro e fechado para se trancar. Ou os três juntos. Ninguém pensou em um shopping. Ninguém pensou em comprar – muito do que foi conseguido na histeria deve ter sido saqueado. E sem carne viva em um shopping, sem mortos-vivos a procurar.

Nos instalamos em uma loja de tecnologia – uma que tem de tudo, mas tudo mesmo. Tive tempo de procurar baterias extras para o meu computador e estou carregando elas, para o caso de a energia acabar. Aliás, essa pergunta me aflige. Até quando a teremos?

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Dia 30

Sei que demorei a escrever e muitos podem ter pensado no pior, mas continuamos vivos. Completamente estarrecidos, mas vivos. Malditos mortos-vivos.

Como contei anteriormente, estávamos na loja de conveniência do posto de combustível do aeroporto. Eu e Anna na sala do fundo, protegida por paredes, uma janela alta e pequena e a porta. Karen na loja, lá na frente, escondida entre as estantes que antes eram dos salgadinhos. Disse que queria ver o nascer do sol e vigiar a possível chegada dos mortos-vivos.

Depois de contar a Anna que possivelmente Karen tinha sido mordida, tive de segurar a boca dela. Anna queria gritar de surpresa – e o faria, se bem a conheço. Ela sabe que logo depois da mordida vem a febre, em seguida a morte e, finalmente, o corpo se levanta. Daquele jeito. Implorei para que ficasse quieta e que procurasse disfarçar quando ela voltasse para a dispensa. Mesmo porque Karen estava com uma das pistolas. Faria bobagem para sobreviver, mesmo que por algumas horas a mais.

Não adiantou falar muito. Assim que Karen abriu a porta, de supetão, Anna soltou um grito abafado. “Se preparem. Tem carnívoro na área”, disse a nissei, e depois voltou para a loja. Acho que interpretou o grito de Anna como apenas um susto comum.

Pedi a Anna que ficasse lá atrás. Fui até a loja com a escopeta na mão e uma pistola na cintura. Conversei com Karen. A coisa era pior do que eu imaginava. Todas as paredes do snackshop eram de vidro e mais ou menos uns 20 zumbis estavam lá fora. Dez deles estavam quase que colados à vidraça, olhando para dentro. E começaram a bater nela e gemer assim que apareci. Não sei se foi o barulho do carro ou o cheiro. Mas eles chegaram lá. E se eu bem conhecia a regra, logo seriam 30. Depois 50.

“Vai lá dentro e ajuda a Anna a guardar tudo nas mochilas. Depois volta que o negócio vai ser feio”, me disse Karen, apontando a arma para o vidro.

Quando eu entrei na sala dos fundos, já não era mais possível ver o carro que estacionamos na frente. Cada centímetro do vidro tinha um morto-vivo batendo. Anna estava nos olhando pela janelinha de vidro da porta, com pavor no rosto - só cabia ele no quadradinho. 

Quando terminei de guardar tudo, olhei novamente pela janelinha da porta, que estava encostada. Um dos vidros rachou, fazendo um barulho agonizante. Vi Karen gritando para que andássemos mais rápido. Foi quando tudo lascou de vez.

Mais um dos enormes vidros que protegiam a loja se rachou com as batidas dos mortos-vivos – o número tinha dobrado – e Anna, assustada, fechou a porta. Mais que isso, a trancou. Karen olhou para trás e correu em nossa direção. Eu nunca vi alguém xingar tanto e com tanta ferocidade. Karen percebeu que fora trancada do lado de fora e que não aguentaria sozinha. E eu, por longos segundos, fiquei paralisado.

Karen me encarou com desespero. Olhos arregalados. Como se dissesse: “Abre isso agora”. Eu vacilei e olhei para o seu braço. Ela acompanhou, olhou para baixo. “Isso aqui é um machucado, idiota! Não vai acontecer nada comigo!”.

Não sei o que me deu, mas eu não dei conta de abrir a porta. Olhei para os vidros que estavam prestes a se romper, olhei para Karen e, acredito, disse com os olhos algo como “sinto muito”. Karen apontou a arma para a porta e tive tempo de pular e de empurrar Anna para o lado, ao mesmo tempo. Ela atirou três vezes, depois chutou a porta com raiva. Nos amaldiçoou, berrou um bocado e o máximo que pude fazer foi se encolher em um canto.

Anna chorou muito com tudo aquilo. E segundos depois ouvimos um dos vidros estourar. Não vimos nada, mas pudemos assistir, em nossas imaginações, um rio de mortos-vivos invadindo a loja. Todos na direção de Karen. Ouvimos um grito abafado. Um choro curto, rápido e também abafado. E um único tiro. Um só.

Prefiro não conjecturar, mas acho que sei o que aconteceu. O que ela fez. Sinto-me culpado, mas também aliviado por não abrir a porta. Provavelmente estaríamos mortos. Só não estamos porque, felizmente, a pequena janela da dispensa, mesmo sendo alta, funcionou como rota de fuga – algo que deveria ter pensado antes, mas fui desleixado, dando apenas sorte.

Anna quase torceu o tornozelo ao saltar daquela altura, mas conseguimos sair pelos fundos e correr. Acho que todos os zumbis da área estavam, naquele instante, tentando entrar na loja, tudo por um pedacinho de carne fresca.

Sei que não é hora de piada, mas perdi uma pistola e uma guerreira para ganhar um carro dos sonhos. Assim que chegamos correndo a uma concessionária multimarcas, fui ao quadro de chaves e peguei uma com uma plaquinha onde estava escrito “Range Rover”. Foi nela que saímos de lá. Um modelo que custa o mesmo que um apartamento.

Estou muito cansado e abalado com tudo, assim, deixo para contar o que vimos perto do aeroporto em outra oportunidade. Por hora, uma dúvida me corrói por dentro. Ela tinha sido mesmo mordida?

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Dia 29

Ainda não sei como tenho nervos para escrever aqui depois de tudo o que aconteceu. Ontem, depois de sairmos da mansão onde estávamos instalados, Karen foi atacada pelos mortos-vivos e quase não consegue entrar no carro. Anna não viu, mas eu percebi, pelo retrovisor, que nossa nova amiga foi mordida. Ou algo parecido. Sei que enrolou um lenço no antebraço. Esperava, naquele instante, que fosse apenas um arranhão da grade, um corte ou algo parecido.

Depois de trocar de lugar com Anna, que estava muito menos assustada que dias atrás, em outras fugas, dirigi rumo ao aeroporto. Era o combinado. Precisei atropelar um zumbi que estava em um grupo de cinco no meio da pista, mas, fora isso, o caminho foi tranquilo. Como imaginávamos. Quase nunca havia trânsito pesado no acesso ao aeroporto – e Karen nos avisou que viu no noticiário, dois dias depois do acontecimento, que todos os aeroportos foram fechados. Provavelmente por causa dos inúmeros acidentes aéreos ao redor do mundo.

Algo que não contei a vocês. Eu e Anna não tivemos a chance de ver o noticiário, mas Karen nos atualizou, pois viu alguma coisa na televisão. Quando o caos se instalou, aeroportos foram fechados, as autoridades pediram para que todos ficassem em casa – o que não funcionou, congestionando as rodovias – e que, em breve, novos direcionamentos e comunicados chegariam. Isso nunca aconteceu. Karen disse que apenas alguns canais ficaram no ar, mas com avisos automáticos.

“Essa foi por pouco”, foi só o que disse Karen, olhando distante pela janela.

A entrada do aeroporto estava praticamente vazia. À direita, onde havia várias concessionárias de marcas caras, só era possível ver o mar de carros em exposição. À esquerda, onde se localizavam os pátios de manutenção e empresas de táxi aéreo, estava vazio como antes. Mais à frente, entrei na área de desembarque. Alguns táxis ainda estavam lá, misturados a alguns carros vazios, alguns com as portas abertas. Outros estavam carbonizados e dois deles tinham os bancos completamente cobertos por sangue já ressecado. Mais para dentro, perto dos portões de desembarque, um carnívoro caminhava solitariamente. Não pude ver direito, mas aposto que vestia o que um dia foi um uniforme de técnico de pista ou coisa assim. Anna tirou uma FOTO com o celular. Está ficando boa nisso.

Foi a deixa para sairmos dali. Dei a volta e logo que avistei o posto me lembrei que estávamos com pouca comida. Quando o mundo ainda era dos vivos, o snackshop 24 horas daquele posto, a loja de conveniência, era ponto de encontro para quem estava saindo para uma noitada ou voltando dela. Lá com certeza tinha comida.

Estacionamos o carro bem em frente às portas de vidro, que estavam escancaradas. Descemos, pegamos as armas e as mochilas, entramos e fechamos tudo. A loja inteira estava revirada, sem comida nenhuma. Mas algo me dizia que atrás da porta de funcionários havia um estoque. Tinha de ter. Muita gente passava ali todos os dias. E também não podíamos ficar ali, com aquele tanto de vidro. Logo iria amanhecer e a loja se transformaria em um aquário aos carnívoros.

Fiquei feliz por estar certo. A sala de estoque e descanso dos funcionários era quase tão grande quanto a loja, tinha apenas uma pequena janela e a porta era comum, mas com trancas. E havia muita besteira pra comer. E isso foi um alívio.

Estou escrevendo aqui enquanto Karen está lá na frente. Pediu que ficássemos aqui. Que iria até lá para ver o nascer do sol e para vigiar um pouco. Aproveitei para contar a Anna sobre a possível mordida. Tive de tapar a boca dela para que não gritasse ou chamasse atenção. Sinceramente? Não sei o que vou fazer. E tenho medo da reação da Anna quando ela voltar. Karen é esperta. Mais que isso... É agressiva.

domingo, 21 de novembro de 2010

Dia 28

Só contando por aqui é pouco. Só eu, Anna e Karen, que vimos tudo, tivemos ideia do que foi aquilo. Ontem decidimos sair da casa – a comida está quase no fim. Partimos de lá para algum lugar incerto. Mas o que interessa mesmo é a forma que saímos.

Já tinha mencionado aqui que a Karen é completamente maluca. Mas devo admitir que sua loucura tem uma certa lógica. Quando ela me explicou o plano do botijão de gás, não pensei que daria certo.

Preparamos o carro e as mochilas e decidimos fazer tudo no início da noite. A antiga Grand Cherokee foi posicionada de frente para o portão. Anna estava ao volante, eu em cima do telhado com a espingarda e Karen sobre uma escada que montou perto ao portão. De lá de cima, a doida jogou o botijão de gás na rua. O mesmo estava com um pano amarrado, embebido em gasolina – ao qual ela ateou fogo antes de empurrar. Me repetiu quinze vezes que eu tinha de acertar um tiro no botijão, quando ele rolasse para longe, antes que o fogo se apagasse. Precisei de dois tirou.

Vocês não têm ideia de como é a explosão de um botijão, assim, tão de perto. Uma bola de fogo subiu em menos de um segundo e o impacto de ar quente me atingiu em seguida, quase me derrubando do telhado. A pancada abriu um buraco no chão da rua e um “buraco” na massa de mortos-vivos que se apinhavam ao redor da casa. Quando consegui me aprumar, vi, antes de saltar sobre o carro, pelo menos quinze zumbis descendo a rua tomados pelo fogo – aqueles que não foram despedaçados completamente.

Quando me sentei no banco de passageiros, Karen já abria o portão. A explosão afastou vários zumbis da porta e, acredito eu, o barulho e o fogo, mais abaixo na rua, chamaram a atenção da maioria, pois estavam se encaminhando pra lá. Era a chance que tínhamos. Anna acelerou forte e saiu da casa, atropelando os que sobraram no caminho. E Karen pediu, com gestos, que fôssemos mais à frente. Assim Anna fez, andando por mais uns dez metros, onde não havia quase nenhum zumbi – e a nissei poderia entrar com maior tranquilidade.

Karen ficou com a escopeta. E precisou usá-la, pois vários mortos-vivos esqueceram do fogo e do barulho do botijão, deram meia volta e foram para cima dela. Acho que dificilmente vou ver alguém lutar com tanta ferocidade. Karen inutilizou três deles com tiros, acertou dois com coronhada e precisou empurrar mais uns sete que a rodearam para conseguir escapar. Anna e eu ficamos petrificados assistindo à cena, pois quase assistimos ela sendo cercada. Mais alguns segundos e ela não chegaria ao carro.

Anna trocou de lugar comigo e seguimos o caminho do aeroporto, pois combinamos que era mais largo e poderíamos decidir o que fazer de lá. Mas essa não foi minha preocupação nessa noite. Olhando no retrovisor, tive a impressão de ver Karen enrolando um lenço no antebraço. Ela foi mordida, tenho certeza disso. Merda! Ela foi mordida...

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Dia 27

Podem me chamar de maluco, mas depois de quase um mês rodeado de mortos-vivos, o dia mais maluco aconteceu hoje. E não tem nada a ver com os carnívoros.

Acho que era começo da tarde. Anna tinha acabado de tomar banho e estava enrolada em um roupão que achou nesta mansão. Então tomei meu banho em seguida e saí, enrolado na toalha – acho que estamos começando a voltar à “vida normal”, o que não é bom. Mas quando dei um passo para fora do banheiro e mirei o quarto, retornei. Isso porque vi Karen encostando Anna na parede. Praticamente encoxando-a. As bocas estavam perto e acho que o beijo entre as duas não tardaria.

Quando voltei ao banheiro, ainda esfumaçado, liguei novamente o chuveiro e esperei. Mil coisas passaram por minha cabeça. Mas todas as teorias foram embora quando Anna irrompeu pela porta do banheiro, me puxou e me deu um longo beijo na boca. Fiquei sem ação – algo que normalmente não acontece. Os zumbis desapareceram. Tudo desapareceu.

E sem me deixar falar nada, Anna me puxou para mais perto, segurando na toalha, e me disse algo como: “A gente vai ter de sair esta noite”.

Acho que vamos usar o botijão de gás muito antes do combinado...

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Dias 24 a 26

Não tive muito tempo de escrever nos últimos dias, assim, resumo o que se passou – pois foi uma verdadeira loucura.

A Karen está conosco. Já explico como a Karen veio parar aqui – a mulher do outro lado, que subia no telhado.

Depois que Anna desceu do telhado – foi mostrar seus cabelos curtos para a vizinha, até então desconhecida –, não mais a vimos e passamos a noite aqui, deitados na sala. Discutimos o que faríamos, pois não poderíamos ficar em um só conto por muito tempo. Dormimos pertinho um do outro e fomos acordados ao mesmo tempo por uma pequena explosão – era o que pensávamos na hora, e estávamos certos.

Mal chegamos do lado de fora e vimos o fogo no fim da rua. Uma pancada de carnívoros (Anna gosta de chamar os mortos-vivos assim) seguia pra lá. E quando achávamos que não seríamos surpreendidos por mais nada, eis que surge Karen, pulando “nossa” grade com uma desenvoltura que dificilmente vou ver de novo.

Ela nos apareceu e disse naturalmente, como se já nos conhecesse, “eles também são atraídos pelo barulho. Vamos entrar ou esperar que eles voltem para frente da grade?”. Simples assim.

Já dentro da casa, Karen explicou que improvisou um coquetel molotov e atirou para aquele lado, distraindo os zumbis. Antes que eu perguntasse, ela disse que foi criada com cinco irmãos e três primos. Eu mesmo não saberia como fazer um. Pelo menos até conhecer essa doida que invadiu nossa casa. Karen é descendente de japoneses, mas com traços bem leves. E gostei do jeito que se veste. Saia curta, bota de cano longo... Roqueira, com certeza. Por enquanto, posso escrever o que eu quiser dela, pois, assim como Anna, Karen tem uma certa aversão à computadores e não sabe o motivo de eu estar fazendo todo esse relato. Talvez por isso as duas ficaram tão juntas nos dois últimos dias.

Aliás, nesses dois últimos dias contamos nossas histórias. Karen estava em casa, com a família. Viu um deles voltar estranho (para não dizer morto). E viu cada um deles ser mordido, viu cada um deles se transformar nessas coisas que hoje andam sedentos pelas ruas. Disse que tentou fugir, mas só conseguiu fazê-lo depois de "matar" o próprio irmão com um porrete. Acho que ali ela pirou um pouco mais do que já era. Mas juntou os cacos, passou na casa do tio, se armou, mudou de esconderijos. Devo dizer que fez um belo trabalho até aqui.

Resolvi finalmente sentar e escrever por causa da última de Karen. Ela trouxe com ela apenas a mochila e a espingarda. E depois de comer as duas latas de sardinha que trouxe consigo, notou que temos pouca comida aqui na mansão que achamos. Disse que temos de ir embora – o que eu já tinha notado, mas estava criando coragem para executar.

O problema é que o barulho do coquetel molotov atraiu mais deles. Muito mais. Olhando de cima do telhado, posso contar uns 200, pelo menos. E a maioria já não vaga apenas, fica à espreita no portão, olhando pra cá. Sabem que estamos aqui. Notaram que tem carne no pedaço.

O plano de Karen para sairmos daqui é, no mínimo, inusitado. Envolve um botijão de gás e só espero que não dê merda. Espero que realmente consigamos sair daqui. 

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Dia 23

Antes de falar sobre mais um dia de sobrevivência aos mortos-vivos, tenho de comentar sobre os sobreviventes. Marne, Cedric, Julio e Bruno entraram em contato. Temo pela vida de Vagner e Marcos. Os dois não entraram mais em contato. Prefiro pensar que está complicado de entrar na internet.

Contei a Anna sobre a mulher do telhado. Ela também subiu para avistá-la. Ela não estava lá, mas apareceu depois de uma hora. Parecia mais animada ao ver os dois e acenou com maior entusiasmo. Sua espingarda a acompanha o tempo inteiro – fico imaginando como ela aprendeu a atirar com aquilo, pois o coice é forte.

Anna quis gritar para ela, mas tampei sua boca. Até mesmo a mulher de lá percebeu o que minha amiga ruiva estava fazendo e colocou o indicador na frente dos lábios. Agora precisamos encontrar um meio de se comunicar à distância.

Enquanto isso não acontece, descemos para comer alguma coisa. Anna me surpreendeu com uma tesoura e pediu que cortasse seu cabelo. Exigiu, aliás, pois disse que não saberia como fazer aquilo. Ela me convenceu dizendo que seria muito imprudente fugir de zumbis com cabelo comprido. Faz sentido. Roupas largas e cabelos compridos devem ser um convite para as mãos sedentas. Mortas, mas sedentas.

Não ficou um primor, mas devo dizer que gostei de ver Anna com os cabelos curtos. Ela subiu ao telhado para mostrar a novidade à nova “amiga”.

Desceu dizendo que há mais mortos na rua. Eles estão se acumulando novamente. Sinto que não vamos poder curtir essa mansão por muito mais tempo...

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Dia 22 (Sobreviventes)

Recebi recentemente notícias de Cedric, um dos sobreviventes que entraram em contato comigo e com Anna. Ao que parece, ele está se arrumando no Sul.

Marne foi o último a responder e já pensa em abandonar o apartamento na Asa Norte. Quem também estava por lá, mas não deu sinal de vida, é Vagner. Temo pelo que pode ter acontecido – ou não conseguiu conectar à internet ou já não está mais entre os vivos.

Outros que tinham encontrado em contato e sumiram: Bruno, Marcos, Julio e Drika. Espero que não tenham se perdido por aí. Já é ruim demais termos tão poucos vivos...

Dia 21

A pessoa que nós “vimos” do outro lado da rua, atirando, colocou uma toalha vermelha na janela. Não conseguimos mais ver nenhum movimento por lá. Talvez por ser muito de manhã. Pode estar dormindo, como Anna. Eu, que não consegui dormir, corri aqui para fora para ver se enxergava algo. Só há a toalha.

Os mortos-vivos da rua estão perambulando longe da casa em que estamos, mas não posso ficar aqui muito tempo. Sei que eles podem sentir o cheiro e se bobearmos, logo estarão rodeando tudo por aqui.

Como daqui de baixo fica difícil ver a casa em frente, resolvi me ater a um velho hábito. Subir no telhado. É uma boa hora para traçar uma rota de fuga – caso os zumbis invadam isso aqui – e, quem sabe, ver lá do alto nosso vizinho atirador. Foi aí que me veio a surpresa...

Quando subi – há um acesso fácil, escalando pela churrasqueira –, consegui ver todas as casas da vizinhança. Também vi que há mais mortos-vivos por aqui que gostaria (já deveria ter me acostumado). E o atirador estava lá, no telhado, no telhado. Atirador não... Atiradora! Dei um grande sorriso quando a vi (acho que o primeiro em dias). Pelo que posso ver daqui, é uma mulher de uns 30 anos, vestida com saia, botas e blusão de frio. Seu cabelo parece preto e vai até o ombro.

Ela demorou para me ver – estava deitada perto da chaminé (acho que a outra mansão também tem churrasqueira), abraçada a uma espingarda. E quando me viu, me acenou de forma tímida. Acho que ela sabia que eu subiria aqui. Não sei como, mas sabia.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Dia 20

Antes de tudo tenho de dizer que recebi mais dois contatos de pessoas vivas em Brasília. Nem tudo está perdido. Acho que, com o tempo, um ou outro vai aparecer. E uma hora teremos de decidir o que fazer.

Um deles é Vagner Vargas. Está em sua própria casa, na Asa Norte. O outro é Marne Azarias. Também está na Asa Norte, mas, ao que parece, se refugiou em um apartamento alheio, exatamente como temos feito eu e Anna (já cogitamos a hipótese de irmos para nossas casas, mas achamos arriscado. O conceito “minha casa”, nessa altura, não existe mais). O bom de Marne é que ele estava estudando Biomedicina... Sorte ter um desse vivo. Vamos precisar deles? De estudos? Espero que sim.

Como citei aqui ontem, parei de escrever porque ouvi tiros lá fora. Anna voltou assustada da janela e me abraçou. Não sei se por medo ou felicidade. O medo, provavelmente, por pensar que, hipoteticamente, um deles fosse capaz de segurar uma arma. A felicidade por ouvir o primeiro sinal de “humanidade” desde que tudo começou a acontecer. Engraçada essa história de ligar tiros a algo humano. A pior criação da humanidade servindo para identificá-la...

Fomos os dois à janela da sala. Ficamos olhando por longos minutos à espera de outro tiro, que veio e derrubou um dos zumbis que tinham sido atraídos uma hora antes. Tiro com barulho alto, demorado. Se eu me lembro bem, deve ser uma espingarda. Algo na memória que envolve meu avô e uma fazendo. Não me recordo bem.

Em homenagem ao meu avô

Está escuro lá fora e não dá para enxergar nada. A luz dos postes ainda funciona, mas é o mesmo que nada. Tivemos de esperar mais meia hora por outro tiro. Esse acertou um morto-vivo no corpo, que voou longe, mas depois se levantou – provavelmente com um rombo. Anna disse que viu o fogo saindo do cano, na casa em frente. Não deu pra ter certeza. Aqui a rua é larga, os vizinhos da frente moram longe. Se fosse rua de pobre, seria bem perto.

O jeito vai ser esperar. Pela manhã, arrisco ir lá fora para ver melhor. Acho que dá para ir ao portão – os poucos que foram atraídos apenas perambulam pelas ruas. Por enquanto, não corremos o risco de ter um mar de mortos empurrando a grade.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Dia 19 (Finados)

Sinto medo, muito medo mesmo... Mas aprendi que sentir medo é bom. Quando se sente medo, é prova de que ainda está vivo.

Acho que os tiros de ontem em Jarbas (morto-vivo que estava preso em um quarto aqui, na casa em que estamos) foram ouvidos. Por eles. Quando chegamos aqui, não havia um único zumbi. Hoje, pelo menos uma dezena deles está lá fora, vagando pela rua e procurando por algo.

Se minhas contas estão certas, hoje é Dia de Finados. Dia dos Mortos. Uma ironia que me fez rir de nervoso. No Dia dos Mortos, nesse Dia dos Mortos, são eles que vieram me visitar. Acho que para pagar todos os outros dias em que não fui visitá-los no cemitério no Dia de Todos os Santos. Nunca gostei de cemitérios... Engraçado, pois minha cidade virou um cemitério a céu aberto.

Onde eles deveriam estar...
Não sei o que atraiu esses novos mortos-vivos pra cá, se os tiros ou os berros e grunhidos desconexos de Jarbas enquanto tinha os dois braços arrancados e a cabeça estraçalhada por uma bala. Fato é que estamos novamente sitiados e não duvido que mais deles cheguem com o tempo.

Anna está ao meu lado. Lê o que escrevo. Ela disse que vai pensar em escrever (finalmente). Ela está armada até os dentes. O olhar está diferente (ela agora foi até a janela). Agora sei que “eles” mudam a gente. Não somos mais quem éramos.

Volto a escrever em breve, pois ouvimos tiros lá fora... Não sabemos de onde vem, mas isso é um ótimo sinal. Anna está tentando encontrar a origem, mas está escuro lá fora. Alguém está atirando! Está atirando!
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