sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Dia 17 (Jarbas)

Não há sinal de mortos-vivos por aqui. Isso é bom. Um sossego dado os últimos dias. E o único que tem, o Jarbas (demos esse nome ao zumbi que está preso no quartinho de empregados) viu hoje a luz do sol depois de sei lá quantos dias.

Anna disse que seria uma boa soltá-lo. Mas só para que pudesse atirar nele logo depois. Treinar com latinhas era uma coisa. Ter um morto andante na frente é outra.

Combinei tudo com Anna. Ela ficaria na frente da porta, com a arma. Eu fiquei quase que escondido, ao lado, com uma automática na cintura e um machado (encontrado na despensa dessa mansão que estamos “morando”). Se Anna errasse o tiro, eu tentaria ele, afinal, balas não duram para sempre.

Foi exatamente o que aconteceu. Anna se afastou e abri a chave, escancarando a porta. No início, silêncio. Depois, um rugido. Jarbas saiu de dentro do quartinho andando lentamente. Mais do que previa. Talvez as juntas tenham apodrecido por falta de movimentação, sei lá. Ele estava sem camisa e usava jeans e botas. Se Jarbas era mesmo um empregado, deveria ser um jardineiro ou coisa parecida.

Anna tentou três tiros. Dois acertaram o peito, que já aparecia bastante destruído (provavelmente de uma luta anterior com alguém). O outro acertou o rosto de raspão. Acho que se assustou por não ter acertado logo e recuou. Gritei para ela parar de atirar e se afastar. E isso chamou atenção de Jarbas. Ele não estava tão lento assim. Virou-se rápido na minha direção e escancarou a boca de forma assustadora. Deveria ter pegado a arma na cintura, mas levantei o machado no reflexo e baixei com toda a minha força. Acertou o ombro, perto da junção, deixando o braço pendurado por pouca coisa. Embora fosse mais difícil manusear aquilo do que eu supunha, tive uma ideia maluca. Precisei de mais duas machadadas para arrancar seu outro braço, o direito (mas esse foi mal cortado, na altura do bíceps).

Anna ficou um pouco em pânico com aquilo, mas, resumindo, consegui amarrar o morto-vivo na pilastra que sustentava o telhado da varanda da pequena casa de empregados. Não deu muito trabalho e não precisou de muita corda, afinal, Jarbas já estava sem os seus dois braços.

Olhar aquilo de perto foi horripilante. A pele de Jarbas estava cinza e amarela, com alguns setores roxos e negros. Uma mistura de cores estranhas que não são comuns a nenhuma pele. O branco dos olhos não existe mais. Ali só há veias, pus e um branco leitoso, opaco. Quase não há mais lábios. É como se a pele do rosto tivesse secado e se retraído, evidenciando quase toda a arcada de dentes amarelados em uma gengiva apodrecida, negra. Acredito que por causa do sangue, que não mais circula. É assim em todo o corpo.

Quando cheguei perto para ver, quase perdi meu nariz. Fui descuidado. Subestimei a fome de um morto-vivo. Ele se jogou para frente, esticando a corda de varal improvisada, e escancarou os dentes na minha direção. Logo depois veio um bafo podre e um grunhido em forma de lamento que me arrepiou. Também me deixou com pena. Ele não olhou para mim, me entenda. Achei que estava me encarando, mas apenas fitava minha carne. Acho que pouco importa o que olha, contanto que seja comestível.

Pedi para Anna entrar na casa, o que fez sem reclamar. Não podia deixar Jarbas daquele jeito. Primeiro dei um tiro com a escopeta bem no meio do peito. Tinha de testar, mais uma vez, uma alternativa que não fosse a cabeça. O chumbo abriu um rombo enorme, mas o morto-vivo continuou ali, se mexendo, querendo escapar, berrando com uma voz estranha que não consigo descrever. Um tiro bem no meio dos olhos acabou com o sofrimento do jardineiro (ou de um homem qualquer que gostava de usar botas e que por algum motivo estava sem camisa).

A foto ao lado eu tirei com meu próprio celular (descobri que a bateria de minha máquina fotográfica foi para o pau). Ficou muito boa, mas tive de tratar antes de colocar aqui. Tratei para piorá-la. Acho que são os velhos hábitos de jornalista. Ninguém merece ver a foto explícita de um cadáver. Mesmo de um zumbi. Até mesmo do jeito em que está soa de mal-gosto. Vou colocá-la mesmo assim. Para alguém que esteja nesse mundo por aí e ainda não viu uma dessas coisas.

Arrastei o Jarbas lá pra fora, no asfalto. Não o coloquei muito longe. Não é nada bom se afastar da casa sem algum planejamento. E mesmo que tivesse tempo e tranquilidade, não o enterraria. Nem mesmo o conhecia. Acho que essa história de apelidar zumbis é uma maneira que encontrei para buscar algum sentimento aqui dentro. Algum apego a qualquer coisa. Acho que os sentimentos estão se esvaindo depressa. Perigoso isso, não ter apego a mais nada...

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